terça-feira, agosto 05, 2003

Das agruras da escrita.
Sobre o paradoxo mais elementar da escrita: o conflito entre a carecida “serenidade” para o acto e o reencontro do escritor com o seu “estômago”.

Uma passagem do Diário de um dos meus escritores favoritos, o incontornável Kafka: «23 de Setembro. Esta história O Processo, escrevi-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã. Quase não conseguia tirar as pernas de debaixo da secretária, tão rígidas elas estavam de estar tanto tempo sentado. A terrível tensão e alegria, a maneira como a história se desenvolveu perante mim, como se eu estivesse a andar sobre as águas. Várias vezes durante a noite senti o peso às costas. Como tudo pode dito, como há para tudo, para as mais estranhas fantasias, um grande fogo à espera em que elas perecem e renascem outra vez.
Como ficou azul do lado de fora da janela. Rolou por ali uma carruagem. Dois homens atravessaram a ponte. Às duas horas olhei para o relógio pela última vez. Quando a criada atravessou a antecâmara pela primeira vez eu escrevi a última frase. Fechar a luz e a luz do dia. As dores leves em redor do coração. O cansaço que desapareceu a meio da noite. A trémula entrada no quarto das minhas irmãs. Leitura em voz alta. Antes disso, espreguiçar em frente da criada e dizer: “Estive a escrever até agora”. O aspecto da cama intacta, como se tivesse acabado de ser posta ali. A convicção confirmada de que com o escrever este romance me encontro nas planuras vergonhosas da escrita. Só desta maneira é que se pode escrever, só com uma coerência destas, com esta abertura total do corpo e da alma.»


O acto da escrita é doloroso. É um processo de auto-bloqueio, de elevada ansiedade, de desconforto físico, de abandono, de incubação, e, finalmente, finalmente, de encontro, de resolução, de serenidade devolvida. Ainda que uma serenidade pronta a quebrar-se ante a permanente insatisfação do escritor, mas isso são contas de outro rosário. Mas para encetar este processo é necessário serenar. E a serenidade é pouco propícia e convidativa ao necessário desequilíbrio de encontro com o “estômago”. Mas há mais. Há o iniludível facto de na escrita de cada um de nós se esconder uma infinidade de impostores. Falsos nós. E quando importa que o eu verdadeiro caminhe ligeiro e seguro na vertiginosa e ténue linha que medeia a serenidade e a angústia do encontro com o “estômago”… quando é assim, a maior parte de nós não chega lá: desequilibra-se e cai!